quinta-feira, 31 de maio de 2007

A gente vai continuar...

Em tempos de crise existencial, chamei um táxi. Como não passasse de um insignificante cão – podre, ainda por cima –, nenhum dos mastodontes de aço deslizante me prestou a mínima atenção, pelo que baixei o “cabis” e, cabisbaixo, continuei a calcorrear os passeios cinzentos e sujos de uma qualquer rua irrelevante de uma qualquer terra recôndita de uma qualquer região esquecida deste universo-holograma que designamos de “realidade”. Não sei para onde vou nem para onde quero ir... “Eu? Sou Cedilhas, O Clandestino, do Clã Destino”.
O meu faro já não é o que era, mas algures entre o emaranhado de neurónios que ainda restam da minha outrora massa encefálica, uma réstia de clarividência – uma qualquer sinapse das poucas que sobreviveram ao Grande Atropelamento – pareceu libertar um sinal eléctrico suficientemente forte para me indicar o caminho a seguir. Ser cão vadio é uma coisa engraçada... Sinto-me livre para fazer o que quiser, mas, simultaneamente, sinto que estou agrilhoado ao peso da consciência da minha própria condição miserável, peso que me entorpece as patas e encarquilha a cauda, desanima o espírito e me puxa cada vez mais em direcção ao abismo. E se, amiúde, parece que já bati no fundo e já não há mais espaço para o fosso se prolongar, logo a vida trata de me desenganar e escavar mais um pouco o fundo da minha sepultura ao mesmo tempo que sachola qualquer esperança de um dia voltar a ver a luz do sol.
Mas nem sempre foi assim. No início desta minha vida errante, tudo me parecia mágico e encantador. Ladrava a velhinhas com enormes sacos de compras entre os braços, urinava em pneus desejando que levassem o meu cheiro para terras longínquas, assim alargando o meu território (cheguei a urinar em pneus de aviões, na esperança de que um dia me aclamassem como Rei do Mundo), defecava em passeios e escondia-me ao virar da esquina a contar os desgraçados que pisavam o meu cocó, enfim... Violei todas as regras de conduta que se possam imaginar, todas as leis humanas, caninas e felinas existentes, todos os limites concebíveis e inconcebíveis, violei inclusivamente os artigos 1, 2 e 3 do Código do Macaquinho do Chinês (CMC). Fiz tudo, sem represálias. E agora, tudo me parece desprovido de sentido – ladro por ladrar, palmilho por palmilhar, urino por urinar, defeco para não explodir num arraial de cor castanha. Toda a minha existência me surge agora como uma anedota privada contada entre velhos desdentados e bêbados no canto mais afastado de uma tasca manhosa, monocromática e pestilenta de séculos antigos. Restam-me a doce recordação de uma tarde distante passada com a bela Lassie a cheirar o rabo um do outro e a fazer “outras-coisas-que-tais”, e o meu companheiro de viagem Lentilhas – só que já não o vejo há algum tempo... Será que lhe aconteceu alguma coisa? Não... Ele também não tem essa sorte...
Enfim, lá diz Jorge Palma... Enquanto houver estrada para andar...!

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