quarta-feira, 30 de maio de 2007


Olá amiguinhos e amiguinhas!

A pedido de várias famílias, matilhas e outros ajuntamentos de animálias, aqui fica um breve testemunho. Deixem que me apresente: Lentilhas, Vira-Lata.

Ora bem, o dia (ou aquilo de que me lembro) começou com as habituais fisgadas dos putos lá do bairro. A distância que tenho conseguido manter e os improváveis esconderijos que fui encontrando durante a estadia neste território hostil têm evitado, pelo menos, brincadeiras mais cruéis - corre o boato que o Bóbi, o cão de guarda da D. Conceição, tinha até há poucos anos as duas vistas, muito menos problemas de flatulência e um ar muito mais jovial.
Quanto a mim, tanto ouvi a lengalenga do meu antigo dono - um new age hippie, como gostava de ser apelidado (quer dizer, preferia isso a "vai mas é trabalhar, ó malandro", que era o que o pai lhe chamava) -, que parti em busca de algo mais do que o estereótipo do cãozinho amestrado que vai buscar o jornal, os chinelos ou os charros do dono sempre com o mesmo ar de subserviente satisfação. Foi assim, que, aqui há dias - quantos não sei precisar -, aproveitei uma porta aberta e pisguei-me antes que os vapores do incenso me fizessem mudar de ideias outra vez.
Agora cá estou eu, num bairro qualquer, plenamente imbuído na missão que abracei de corpo e alma canina: povoador itinerante - os cães que seguiram a bordo das caravelas guiaram-se pelas estrelas, eu faço-o pelo meu faro, que me diz que a Boneca está com o cio.
Mas não pensem que é uma vida de delícias. De muita coisa terrena abdiquei, tofu e seitan e bolas de ténis incluídas. Levo uma vivência simples, alternando caixotes, raides ao talho quando todos estão distraídos e olhares tristonhos junto das velhinhas. Sendo um nómada, não aspiro a território próprio, pelo que não preciso de andar de pata alçada com a frequência que seria de esperar (já fui perito em chichis na poltrona ou presentes na carpete). Tento respeitar os meus cão-semelhantes, apesar de, nesta profissão, os atritos serem muitas das vezes inevitáveis (grandes cãofusões!). Sou livre. Não tenho matilha, embora saiba que já dei origem a várias. Em suma, pouco me aflige: só as pulgas, a sarna, os funcionários dos canis e esta pastilha elástica que desde ontem me ficou colada num dente. Ah, e gosto muito de rebolar no estrume, chapinhar nas poças, comer os passarinhos que caem do ninho na Primavera, atacar carteiros e correr atrás da minha própria cauda, mas só nos tempos livres.
Chega por ora. Vou continuar a ronda à casa da Boneca. Parece-me que a dona fechou mal o portão, e a matilha de rufias está distraída.

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